Por André Dick
Nos intervalos de suas internações, teve experiências como professor. Depois de superar a doença nos anos 1940, foi trabalhar como leitor na Universidade de Alexandria, no Egito, quando já se desenhava o crítico que lançaria em sequência alguns títulos, como O grau zero da escritura e Crítica e verdade, que criaram desconforto na intelectualidade francesa acadêmica e conservadora. A polêmica não o afastou do campo do ensino: Barthes foi um dos teorizadores da semiologia (lançou, inclusive, o libello didático Elementos de semiologia, influenciado por Saussure e Peirce), ao mesmo tempo em que ingressava no mundo universitário, na École Pratique des Hautes Études.
Atingiu o ponto mais alto, como professor e intelectual francês, ao ser nomeado para o Collège de France, em 1976, para a Cátedra de Semiologia Literária.
Já antes desse cargo, porém, Barthes navegava por outros campos e num livro como O prazer do texto tentava utilizar uma visão pós-estruturalista, aplicando a teoria à leitura das obras. Além disso, havia lançado a “autobiografia” fragmentada (e romanceada) Roland Barthes por Roland Barthes e se prepararia para lançar Fragmentos de um discurso amoroso, seu inesperado best-seller e talvez seu livro mais conhecido, sem nenhuma ligação com a teoria cientificista que imaginou ser importante na época do auge da Semiologia.
Seu caráter múltiplo, porém, não se restringe a esses livros. Guardava interesse pela fotografia (em A câmara clara), pela música (em O óbvio e o obtuso, livro póstumo com reunião de diversos artigos), pela desconstrução da narrativa (em S/Z, bastante influenciado pelas teorias de Derrida e de Julia Kristeva), pela interferência dos signos em nossa percepção cotidiana (em Mitologias, O império dos signos e Sistema da moda), pela mudança no direcionamento crítico (Sobre Racine) etc., sem cair no puro sociologismo histórico, mas criticando esses elementos, como se lidasse com textos literários. Tal posicionamento mostrava um autor demasiadamente múltiplo para a teoria ou para a crítica literária. Contudo, por outro lado, Barthes, por meio desses outros campos de linguagem, enriquece o que pensamos ainda existir: a literatura, que ainda faz dele um destaque nos dias atuais – já longe de 1980, quando faleceu com uma parada respiratória enquanto estava internado devido a um atropelamento.
Para revivê-lo, o caminho agora é encontrá-lo nas livrarias. Daí a importância da coleção Roland Barthes, coordenada por Leyla Perrone-Moisés para a editora Martins Fontes, que está trazendo a reedição ou a primeira edição de seus livros. Comecemos dando um breve apanhado de quatro deles que contêm ensaios inéditos: o primeiro de teoria, o segundo de crítica, o terceiro sobre o sistema e a moda, e o quarto sobre política.
O volume recente de inéditos de Teoria recupera um Barthes em mudança. São textos com o sentido de esclarecer o processo no qual se dá a escritura, fazendo ligação entre culturas díspares, contra o monolinguismo e investigando o estruturalismo, a cultura de massa, além da paixão pelo escrever. Destacam-se a carta de Barthes sobre Derrida (em poucas linhas, Barthes sintetiza a obra desse filósofo, morto em 2004) e uma recuperação da história da escrita, além do ensaio basilar (originalmente, um verbete) sobre o “Texto”. Já nos inéditos de Crítica, encontram-se duas investigações sobre O estrangeiro, de Albert Camus, o ensaio “Masculino, feminino, neutro”, que deu origem a S/Z, e o belo “Mesas-redondas”. De modo geral, os ensaios que formam esse volume parecem enfeixar uma ligação direta com Ensaios críticos e Novos ensaios críticos, na forma e na modulação de tom. O volume sobre Imagem e moda recupera o ensaísta de Sistema da moda (possivelmente seu livro mais cansativo e com um estruturalismo mais ortodoxo), mas apresenta textos inéditos, mais interessantes, sobre o tema. No volume sobre Política, veremos textos com viés mais variado, entre eles uma análise a respeito de Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. Curiosa é uma resenha de Barthes sobre A peste, de Camus, que levou este a reclamar contra seu crítico, numa longa carta, e receber de volta uma resposta curta e arrogante. Importantes, igualmente, são os escritos sobre a China, a utopia, o marxismo, a violência, o antissemitismo, os hippies, além de suas entrevistas, permeadas de bom humor. Com textos mais do início da trajetória de Barthes, mostra que o universo político foi rejeitado mais tarde pelo escritor porque envolve um certo “discurso de verdade: discursos de arrogância, discursos de militância, discursos de autoridade e de certezas”, como escreve Leyla Perrone na introdução de O rumor da língua.
Tais inéditos juntam-se à publicação de seus cursos e seminários O neutro, Como viver junto, A preparação do romance I e A preparação do romance II, organizados a partir de fichas do autor com anotações feitas para as aulas dadas no Collège de France – todos os livros se organizam, por isso, em dias de aula. Apesar de proporcionarem uma leitura mais difícil, pois elíptica, esses livros agradam pela velocidade do pensamento de Barthes. Neles, há uma precisão analógica, feita de idas e vindas, que revela uma delicadeza poética no tratamento com as ideias, como se fossem criando uma interação com a classe (a qual o leitor substitui, no caso, mesmo que sem a voz de Barthes, que vem em CDs apenas na edição francesa do livro). Embora o significado escape, o significante poético permanece, o que não é paradoxal em se tratando da escrita de Barthes. Nesses seminários, como nos últimos livros do escritor (Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso), fica melhor esclarecida essa ligação do escritor francês com a humanidade e com o afeto pelo outro. Como escreveu José Guilherme Merquior, num longo ensaio dedicado a Barthes em De Praga a Paris, o francês teve um “papel crucial no movimento (estruturalista)”, sendo uma espécie de “oficial de ligação entre o estruturalismo e o existencialismo”.
Numa escala comparativa, O neutro recupera ideias de O grau zero da escrita, no sentido de trabalhar um painel sobre a escritura que busca um ponto de conciliação entre rumos diferentes, nunca escolhendo nenhum deles. O neutro é uma figura de reflexão para Barthes: um neutro via Sartre e Blanchot, que serviria de mote para Derrida, não por coincidência um leitor de Barthes. Existe no neutro uma crítica ao fato de o indivíduo, em seu comportamento social, precisar, não raramente, tomar posição. Ou se mostrar sempre disposto, o que Barthes contesta, referindo-se, nas entrelinhas, ao luto que guardava, na época, pela morte da mãe (o que iria recuperar nos biografemas de Diário de luto, obra póstuma e também incorporada recentemente à coleção dedicada a ele pela Martins Fontes). A crítica contida em seu conceito guarda laços de parentesco com a cultura oriental, sobretudo com o zen, ao qual o autor recorre em alguns momentos. Para Barthes, o crítico, por exemplo, não tem nenhuma obrigação de tomar partido, muito menos de comentar uma obra se ele não quiser. Ao mesmo tempo, ele contesta a ideia de que ser neutro é um sinal de fraqueza, o que remete à desconstrução de Derrida, que optava pela diferença – a conciliação entre extremos, contra o logocentrismo do pensamento. Nesse sentido, um dos momentos mais interessantes de O neutro é aquele em que Barthes fala da questão do imaginário, recorrendo aos casos de Valéry, Baudelaire e Mallarmé. O imaginário, usado no sentido lacaniano, é entendido por Barthes como uma espécie de “lugar” onde se distendem todas as impressões e leituras do autor, que assume várias máscaras.
Já Como viver junto recupera ideias de Fragmentos de um discurso amoroso, mas sob um viés mais concentrado em relacionamentos culturais, de como o ser humano se adapta a cada meio, a cada convivência, e não investigando tanto o campo amoroso (analisa até Robinson Crusoe, de Daniel Defoe), embora recorra a ele em alguns momentos. Estuda mais o comportamento social que o indivíduo pode revelar (seja sozinho, seja numa comunidade): a maneira como organiza seu quarto, como se alimenta, como lida com determinados sentimentos (desejo, melancolia, morte), analisando tudo como linguagem. Há um certo ar da sistematização que Barthes faz do universo da moda, mas sem o mesmo viés estruturalista cientificista, que era e é difícil de suportar, armadilha na qual ele caiu poucas vezes (em alguns momentos de S/Z e Sistema da moda, por exemplo).
Essa valorização da linguagem se amplia em A preparação do romance I e II, que enfocam o processo que o escritor enfrenta para compor sua obra. Se o primeiro livro é mais dedicado ao haicai, o segundo mostra uma inclinação para o universo poético da modernidade, tendo em mira os poetas Dante, Rimbaud e Mallarmé. Mas, para contar também o processo de criação, acaba passando, com atenção, por Proust e Kafka. É, possivelmente, o que de melhor escreveu Barthes sobre a poesia. Além de recuperar a desistência poética de Rimbaud, o crítico francês trata do Livro sonhado por Mallarmé e faz comentários sobre Vita nova, de Dante. A dicção utilizada nessas explicações, ao mesmo tempo tão orais e tão poéticas, mostra uma apropriação inteligente, por parte de Barthes, do que Jacques Scherer e outros escreveram sobre o projeto irrealizado de Mallarmé. O livro, no entanto, vai além: é impressionante como Barthes costura os elementos pelos quais passa o escritor (sua vida em comunidade ou em solidão, seu desejo de escrever, a relação entre a obra e o mundo). A preparação do romance II traz também o curioso seminário “Proust e a fotografia”, dedicado a analisar fotografias que Nadar tirou de escritores e outras personalidades.
Esses inéditos e seminários se juntam, na coleção, a outros livros já conhecidos: O grau zero da escrita (embora se preferisse escritura), A aventura semiológica (que faz parte da Coleção Tópicos, também da Martins Fontes), Fragmentos de um discurso amoroso, Sade, Fourier, Loyola, O rumor da língua, O grão da voz (livro de entrevistas) e Incidentes, entre outros.
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