sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Theo van Doesburg: o multiartista holandês (II)

Por André Dick

Como afirma Haroldo de Campos, em “Theo van Doesburg e a nova poesia”, já referido:

van doesburg pertence à categoria dos poetas-pintores (kurt schwitters, kandinsky, klee, raoul husmann, hans arp), identificável principalmente na moderna literatura de língua alemã, cuja obra, embora, em certos casos, circunstancial e “bissexta”, está mais próxima do sentido criativo de uma nova poesia, por suas características de desnudamento formal, do que a maioria dos profissionais do verso, peritos-provadores do alambique lírico ou sombrios oficiantes de cinzentas metafísicas, que, malgrado o lance de dados mallarmaico (1897), continuaram e continuam aguando a tradição poética viva.


Prossegue Haroldo:

mas não só. van doesburg foi um dos que mais conscientemente, entre esses experimentalistas, colocou o problema de uma nova forma poética. não ficou nas soluções do tipo kandinsky/arp: uma espécie de abstracionismo temático; transposição, em termos de conceitos verbais, dos efeitos visuais da arte não figurativa, o que incluía um princípio de organização ainda discurso, não muito diferente da escrita automática.

O autor de Xadrez de estrelas considera que o multiartista “não se deteve apenas numa revolução temática, conteudística, que só até certo ponto e taticamente corresponderia a uma nova visão do poema. enfrentou o poema como um problema de relações e procurou resolvê-lo com seu material específico – a palavra – sem apelo a qualquer retórica, ainda que de conteúdos abstratos”.
Suas palestras e performances serviram para intensificar a tendência idealista entre os mestres da famosa escola alemã de desenho industrial, a Bauhaus, onde Van Doesburg chegou a lecionar, internacionalizando, de fato, o movimento.


Em 1925, rompeu com Modrian, que entrou em conflito com Van Doesburg no campo teórico. Mondrian rechaçou a utilização de linhas diagonais que Van Doesburg passou a fazer, já que as linhas verticais e horizontais eram a estrutura da teoria neoplástica.
Em 1928, a revista De Stijl teve seu fim decretado, embora muitos apontem que o movimento só se interrompeu com a morte de Van Doesburg (em 1931).
Em 1930, Van Doesburg e outros consideraram que a “pintura abstrata” começasse a se chamar “pintura concreta”, e, como destaca Mel Gooding, em Arte abstrata, “a obra de arte fosse uma entidade autorreferente baseada em regras, ‘inteiramente concebida e formada pela mente antes de sua execução’ com ‘absoluta clareza’ e controle; em resumo, um modelo de realidade”, o que remete ao artigo polêmico de Haroldo de Campos sobre a poesia com intuito matemático – que ocasionou o rompimento de Ferreira Gullar, no Rio de Janeiro, que fundaria o movimento neoconcreto.
Haroldo analisa o poema “VOORBIJTREKKENDE TROEP”:

seu livro “soldatenverzen” (1916 – “versos de soldado”) compõe-se de uma série de poemas com duas, três ou quatro palavras apenas. o “exhibit” que apresentamos (“woorbijtrekkende troep” – “tropa em desfile”) evidencia este sentido de estrutura rigorosamente econômica, sem intromissão de qualquer resíduo discursivo ou arabesco metafórico, procurando criar, com elementos exclusivamente gráfico-sonoros, uma onomatopeia-ideograma de uma tropa em movimento. Não nos iluda o vocabulário militar, próprio da época (1ª guerra mundial – em 1914 van doesburg fora convocado), encontradiço também em caligramas de apollinaire ou nas “parole in libertà” de marinetti e seu grupo. no “tropa em desfile” não há nenhuma intenção de arranjo pictográfico exterior, como, p. ex., na metralhadora e na bota do “2e. cannonier conducteur”, poema publicado por apollinaire mais ou menos à mesma época (1915); tampouco a figuração por assim dizer “imitativa” da velocidade que ocorre no “après la marne, joffre visite le front em auto” (1919), de marinetti, caos verbal “parolibrista”, frenético malabarismo tipográfico desprovido de qualquer vontade construtiva. no poema de van doesburg, a noção de organização rígida está sempre presente:



pode-se dizer que, descartada a temática circunstancial, já há uma antevisão de um problema concreto de composição. a invasão do bloco verbal pelo branco da página é calculada de maneira a criar um movimento intrínseco, não “figurado”, mas resultante do jogo de fatores de proximidade e semelhança. Os cortes em “ransel” e “ruischen”, isolando e repetindo no campo visual elementos idênticos de modo a produzir uma espécie de sístole-diástole rítmica (abrir e fechar de espaço); a minimização da estrutura de “ruischen” a “r”, resolvendo com um desfecho-silêncio (não um “finale enfático”) a andadura da peça, o que lembra certas estruturas análogas da música moderna (webern, p. ex.); a exploração consciente das semelhanças de letras (h / n, e / c,), impondo um sentido de ordem às desarticulações do segmento ruischen e contribuindo para a dinâmica desejada; todos esses recursos (para não falar no uso até certo ponto interessante, embora discutível, pela mensagem de arbitrariedade, de negritos e grifos, intercâmbios de caixa alta e baixa, com função de tônicas-focos para uma leitura-partitura-oral-visual) dão um nível de interesse extremamente atual às pesquisas de theo van doesburg, que parece ter trazido para sua poesia a disciplina neoplástica do movimento “de stijl” – dique à anarquia dadaísta/futurista; convite a uma poesia nova e construtiva.

Interessante destacar que Ran sel significa mochila, tendo um verbo semelhante (“ranselen”), que seria “bater, machucar”. “BLik-ken – trommel” significa “tambor enlatado”, sendo que apenas BLik, destacado em alguns versos, significa olhar – revelando a marcha para a guerra.

Ran sel
Ran sel
Ran sel
Ran - sel
Ran - sel
Ran - sel
Ran – sel
Ran - sel
BLik - ken – trommel
BLik - ken - trommel
BLik - ken - TRommel
RANSEL
BLikken trommel
BLikken trommel
BLikken trommel
RANSEL
Blikken trommel
Blikken trommel
Blikken trommel
RANSEL
BLikkentrommel
Blikken trommel
Ransel
Blikken trommel
Ransel
Blikken trommel
RAN
Rui schen
Rui schen
Rui schen
Rui schen
Ruischen
Ruisch...
Ruisc...
Ruis...
Rui...
Ru...
Ru...
R...
R...


É interessante, como observa Haroldo, que o aspecto visual em Van Doesburg é mais construtivo do que em Apollinaire e em Marinetti. Outro poema que dialoga diretamente com “Gotas de sangue”, de August Stramm, é “Oorlog” (“Guerra”), cuja tradução livre vem a seguir:

O céu caiu na terra em pedaços
E em nenhum lugar é uma flor
que vive intacta.
A terra cheira a sangue,
fora do céu que briga.
A ferida é imensa
e não cura.

O céu desfalece.
A razão mente rápida.
O homem está desaparecido.
Ele rompe com tudo.
O rugido dos animais nas ruas.
Eles cheiram a sangue.
Eles teimam consigo próprios.
Eles lançam seu focinho escuro
à terra rubra
e criam a si mesmos no céu
sangue e pólvora única.

Também temos o paralelístico “Obelia 1”:

Na minha mesa
é o céu
estrelado e branco
lilás-azul
Na minha mesa com as tintas
Há um pedaço sujo de corda
Que é o céu
profundo
que é o céu
tão alto
que é o céu
em torno
em torno
em torno
que é o céu
azul

O que as estrelas são
branco
branco
branco
Este é o céu
Este
Este
Este

Vejamos, no próximo tópico, o poema “Mundo infantil”, incluído na ótima antologia Uma migalha na saia do universo: antologia da poesia neerlandesa do século vinte (Seleção e introdução de Gerrit Komrij e tradução de Fernando Venâncio), cuja disposição é inovadora, além da própria repetição de imagens (que remetem um pouco à poesia russa moderna).

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