quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O silêncio explosivo de Rimbaud

Por André Dick

O poeta Jean-Nicolas Arthur Rimbaud se inseriu na tradição não por opção, não por ser um modelo de caminho a ser seguido, mas pela própria negação a tudo. Isso é claro não só através de sua obra, mas por sua importância mais de um século depois de sua morte. Rimbaud, para muitos, morreu em vida, por “livre e espontânea vontade”, como escreve Leyla Perrone-Moisés, deixando a poesia logo no início da adolescência, mas pode-se dizer que, com isso, soube ir além, aonde nenhum poeta ousou.
Um dos pontos mais altos da poesia francesa do século XIX se encontra, afinal, em sua obra – certamente ao lado de Charles Baudelaire, com suas “flores do mal” e Stéphane Mallarmé, com seu “lance de dados”. Para nós, brasileiros, a obra de Rimbaud é infelizmente pouco conhecida, muito em razão de o Simbolismo, do qual Rimbaud foi o principal precursor, nunca tenha recebido um grande espaço em nossa literatura. Alguns de nossos grandes simbolistas foram, afinal, os catarinenses Cruz e Sousa, Ernani Rosas e Emiliano Perneta (os dois últimos menos conhecidos), o baiano Pedro Kilkerry e o mineiro Alphonsus de Guimaraens, o mais popular dos citados – seu poema “Ismália” está em muitos livros escolares. No Rio Grande do Sul, três representantes: Alceu Wamosy, Eduardo Guimarães e Marcelo Gama.


Fragmentos de vida

Rimbaud nasceu em em Charleville, cidadezinha do interior da França, em l854, longe das grandes metrópoles, dos grandes meios de circulação da cultura (que, para Rimbaud, ficava em qualquer lugar, menos em Charleville) e da África, para onde partiu mais tarde, deixando a poesia em último plano.
Em sua juventude, sua rebeldia e seu ímpeto de liberdade já chamavam atenção, sobretudo no colégio, onde costumava impressionar seus professores com poemas em latim, pelos quais ficaria conhecido inicialmente. Entre fugas de Charleville, pedidos de publicação de alguns poemas seus ao inspirador Theodore Banville e versos, muitos versos, desde os dez anos de idade, Rimbaud foi amadurecendo. Em l869, ele iniciaria sua obra, com “As dádivas dos órfãos”, que seria publicado na Revue Pour Tous, em janeiro de l870, poema longo e, por vezes, piegas.
A convite do poeta Paul Verlaine, para quem havia mandado alguns versos, foi morar na capital da vanguarda literária, Paris, em l87l, levando, embaixo do braço, o poema pelo qual mais ficaria conhecido, o antológico “O barco ébrio” (que foi muito bem traduzido por Augusto Meyer e Augusto de Campos), composto quando tinha em torno de 15, 16 anos. Na Paris dos poetas e outros artistas mais avançados no tempo, cercou-se de personalidades literárias e se iniciou na droga predileta daquele período: o haxixe, atrás do “desregramento dos sentidos”.
Seu melhor amigo em Paris, neste período, foi justamente Paul Verlaine, companheiro de poesia e diversão. Rimbaud, afinal, se hospedou na casa dos sogros de Verlaine. A dupla compunha o “Círculo Zútico”, um clube de artistas, sobretudo poetas, cuja maior diversão era passar as noites fazendo festa entre bons e maus versos, aplausos e vaias.
Foi nessa amizade também, entre Rimbaud e Verlaine, que cresceu um envolvimento perigoso, pois o segundo era casado, arranjando problemas com a esposa ao circular com Rimbaud pela noite parisiense. Essa relação problemática acabou rendendo também ao poeta idas e vindas no trajeto Charleville-Paris. Numa dessas idas a Paris, em l873, Rimbaud tomou um tiro de Verlaine que quase o fez perder a utilidade da mão esquerda. O caso chegou a parar na polícia. Mas a trajetória de Rimbaud não ficou só nisso: ele viveu aventuras em países como Bélgica (aonde fora com Verlaine), Inglaterra (onde teve uma vida miserável em Londres), Alemanha (onde virou preceptor dos filhos de um médico em Stuttgart), Itália (de onde foi expulso) e Holanda (onde se engajou no exército), entre outros, nunca fixando lugar.
Disposto a fugir da Europa branca e aristocrática, e encontrar novos povos, novas culturas, um novo universo, enfim, Rimbaud tomou o caminho da África. A vida do poeta, então, traçou os contornos de uma jornada sem fim, mais do que já era, tão ou mais trepidante que sua prosa, registrada em Uma temporada no inferno e em Iluminações, constituindo-se em influência direta na obra de outros escritores modernos, sobretudo os beats americanos dos anos 60, que espalharam pelo mundo a cultura junkie. Na África, Rimbaud passou, entre outros lugares, por Chipre, Egito, Harar, Somália, Ugadine, Bubasse, Etiópia, tornando-se o primeiro homem a desbravar o rio Ugadine, o que lhe oportunizou realizar relatos de viagem, publicados pela revista Sociéte de Géographie. Nesse ambiente, Rimbaud foi o homem que traficou armas, exportou ouro, marfim, peles e café, participando da construção de um palácio e cruzando desertos. Só a travessia do deserto da Somália durou, a cavalo, vinte dias.
Em l879, ano em que contraiu febre tifoide, ele deu a seguinte declaração sobre a literatura e, especificamente, sobre a poesia, ao seu amigo inseparável Ernest Delahaye: “Já nem penso mais nisso”. Como se tudo que escrevera até então pertencesse ao acaso, relegando o passado e sua juventude apenas para os admiradores da poesia. Talvez Rimbaud, o simbolista francês por excelência, a peça-chave para compreender os passos de uma futura vanguarda, entre futurismos, vorticismos, dadaísmos e outros ismos, com coração de caçador, quisesse nos comunicar além da sua poesia, embora isto seja difícil, tal a amplitude que ela atingiu. Isto é, talvez Rimbaud tenha pretendido separar suas facetas, uma delas voltada para a vida literária e a outra para a terra estrangeira, quase inevitável em sua vida.
Quando Rimbaud, castigado por um tumor cancerígeno no joelho direito, agravado por uma antiga sífilis, teve a perna amputada num hospital de Marselha, a 22 de maio de 1891, após varar o deserto que separa os montes de Harar do porto de Zeilá e passar por Aden, percebemos que toda essa trajetória rumava a algum significado. O poeta faleceu no dia 10 de dezembro do mesmo ano. Seu último desejo (ser inumado em Aden, cidade que adorava) não foi atendido: por ironia do destino, a mãe resolveu enterrá-lo em sua cidade natal, de onde fugiu a vida toda. Assistiram sozinhas ao seu enterro a mãe e a irmã.


Fragmentos de poesia

O poeta Paul Verlaine observa que na poesia de Rimbaud “a língua é clara e se mantém límpida mesmo quando a ideia turva sua dicção”. As cores concretas de sua poesia são visíveis em poemas como “No cabaré verde”, “Minha boêmia (Fantasia)”, “Romance” e “Sensação”. Neles, o poeta lida com a descrição de lugares e a expressão de sentimentos diante de um mundo que se abre, dando a nítida sensação de que alimentava sua subjetividade por meio de jornadas exteriores.
Outros poemas seus seguem caminhos diferentes, embora todos tenham as características da poesia simbolista, como a musicalidade, a introspeção, na tentativa de desvendar a alma (ou, seguindo Lacan, o inconsciente)seja da palavra, seja do poeta, a julgar, de modo mais acentuado, pelos poemas “Vogais” – cuja estrutura simbolista, baseada, obviamente, nas vogais, é universal e complexa –, e “A estrela chorou rosa” - com sua quadra antológica.
“Canção da mais alta torre” – onde estão os versos da vida de Rimbaud: “por delicadeza / perdi a minha vida” –, “A eternidade” – que trabalha com as nuances que se abrigam na alma humana –, “O riacho de Cassis” – um dos mais belos e menosprezados poemas de Rimbaud – e o excepcional “Memória”, composto de imagens oníricas e, apoiado em sua fragmentação, extremamente interessante, fazem parte de um período em que o poeta queria fazer poemas com um ritmo mais leve, quase de cancioneiro, embora todos sejam extremamente concisos e relevantes dentro de qualquer antologia de poesia universal.
Há outros poemas brilhantes de Rimbaud que merecem ser destacados, tais como ”Miguel e Cristina” – uma observação compenetrada de imagens em rotação –, “As primeiras comunhões” – com pequenas tomadas da infância –, “Lágrima” – com influência direta de Catulo – e “A música” – hino de repúdio à moralidade de sua cidadezinha natal, entre muitos outros que entrariam em qualquer seleção mais abrangente.
Tal gama de temáticas faz com que não faltem definições e elogios a Rimbaud. O poeta Paul Claudel o denominava “místico em estado selvagem”, enquanto, para o poeta norte-americano Ezra Pound, a poesia não evoluiu nada depois de sua passagem, assinalando, em sua obra, alguns elementos da poesia latina de Catulo, sobretudo na clareza e objetividade. Décio Pignatari, um dos patriarcas da poesia concreta, o considera o “demoníaco anjo loiro da poesia ocidental”, muito em razão de o poeta francês ter guardado uma certa atração por anjos, que, inclusive, aparecem em alguns de seus poemas.


Para se ter uma ideia de como se buscaram e se buscam definições para o poeta de Charleville – entre os quais interiorano e provinciano –, o próprio Rimbaud se considerava um “vidente”. O poeta, tradutor e crítico literário Augusto de Campos, em Rimbaud livre, que traz excepcionais traduções de poemas referenciais de Rimbaud, busca definir o poeta francês numa comparação com Stephane Mallarmé, outro poeta do simbolismo francês. Rimbaud, sob a ótica de Augusto, seria explosivo; Mallarmé, implosivo. Comparado a Mallarmé, certamente Rimbaud foi mais explosivo. Explosivo não só em se tratando de imagens poéticas (basta ler seu poema de l00 versos, "O barco ébrio"). Explosivo em se tratando de viagens, internas (sem fazer aqui uma menção ao uso de haxixe ou outras drogas, como o faz Charles Baudelaire, também simbolista nessa fauna de símbolos em que se constituía a poesia francesa) e externas, no que se refere às peregrinações, aos desbravamentos, ao tempo passado em estradas, ao desolamento introspectivo, aos escritos repassados em estradas desertas.
Talvez em razão disso tudo, Rimbaud continue sendo um enigma – o buraco negro – tão grande ou maior em relação à poesia, para o crítico literário americano Harold Bloom, em seu O cânone ocidental, famoso por seu desprendimento da poesia francesa. Quem disser conhecer a poesia contemporânea, precisa ter lido Rimbaud.
Sua poesia, sóbria, mas num ritmo flutuante, de ondas que batem com violência. no convés de um navio – um barco ébrio –, estruturada em tessituras sonoras, aliterações e musicalidade do inconsciente, representa parte do pensamento moderno que só viria a se refletir com mais vigor na poesia em meados dos anos 50, numa certa poesia da indeterminação, visualizada por Marjorie Perloff, numa trajetória Rimbaud-Cage, em The poetics of indeterminacy. Desse modo, Rimbaud é um poeta atemporal, em sua explosão de personalidades e cores. Sua obra pode ser lida tranquilamente pelo leitor atual, uma vez que sua linguagem tem como pano de fundo a linguagem, não uma porção de sentimentos dispersos.


São poucos os que conseguiram inscrever uma obra literária entre as maiores da história, produzindo, basicamente, dos l6 aos l9 anos. Só isso já bastaria para colocá-lo no patamar mais elevado da “poésie”. Como lembra Leyla Perrone, Jean-Pierre Michard, crítico francês, analisa que o silêncio rimbaudiano é “um malogro do projeto paradoxal de construir destruindo; Rimbaud não teria, afinal, encontrado a linguagem total e instantânea que buscava”. “Eu é um outro”, disse Rimbaud de si mesmo. O mastro para a virada de conceito em relação ao papel do autor. Quando não se é si mesmo, permanece o incosciente: surgem os heterônimos de Pessoa, a constelação de Mallarmé às portas do século do cinema, o silêncio contrário (implosivo) de Paul Celan, as conferências sobre o nada de Cage, o livro objetual de Edmond Jabès etc. Talvez tudo seja silêncio. Mas jamais teremos outro Rimbaud, este capaz do silêncio explosivo.

Romance

I

- Não se pode ser sério com 17 anos
Um belo dia, adeus chope adeus limonada,
De todos os cafés cheios de suburbanos!
- e se vai sob as verdes tílias da estrada.

As tílias são boas como as tardes!
O ar é puro e doce, a pálpebra arqueja;
O vento carregado de barulhos – se vê a cidade, -
Com perfumes de vinho e de cereja...

II

- Eis que se percebe uma pequena tira
De azul escuro, em meio a um pequeno ramo,
Picotada por uma estrela má, que aspira
Um doce arrepio, pequeno e todo branco...

Noite de junho! 17 anos! – A gente fica tonto.
A seiva é do champanhe e subo ao seu seio...
A gente divaga; a gente se beija num beijo solto,
Que pousa ali, como um pequeno inseto alheio...

III

O coração Robinsona atravessa o romance,
- Quando, na claridade de um poste pálido,
Passa uma moça de relance,
Sob o ombro do pescoço de seu pai que assusta rápido...

E, como ela se descobre completamente à parte,
Fazendo trotar suas pequenas botinas,
Acaba se voltando, alerta, como em pura arte...
Sob seus lábios soluçam cavatinas...


IV

Você está apaixonado. Até o mês de agosto.
Você está apaixonado. De seus sonetos ela ri.
Os amigos se vão... é do tipo de mau gosto.
Que um dia ela escreva alguma coisa para ti...!

Nesse dia – você volta aos cafés suburbanos,
Regressa ao chope, à limonada...
- Não se pode ser sério aos 17 anos.
Quando a tília perfuma as aleias da estrada.

29 de setembro de 1870.

(Tradução de André Dick)

Um comentário:

  1. fico feliz em ver que tantas outras pessoas são capazes de gostar realmente do que é belo. não disso ou daquilo, mas sim da beleza em seu estado bruto. Que certas vezes chega até a ser ofensiva, não que isto seja ruim, mas sim que apenas seja um pouco, ou muito, controversa com a imposição da sociedade. Da época passada ou desta.

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