sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Referências de Paul Valéry em João Cabral de Melo Neto (I)

Por Nicole Cristofalo

Descubro que la poesía no me interesa sino como indagación de un pequeño problema cuya solución es bastante improbable:
Sintaxis x música x convenciones.
En lo demás -es decir, en lo que se refiere a la imaginación- la física y la matemática son mucho más estimulantes, ricas, etcétera.
En cuanto al sentimiento puro y simples, cada uno tiene el suyo.



Adotamos como ponto de partida este trecho do Cahiers de Paul Valéry, traduzido por Hugo Gola, onde são citadas algumas das principais características que estruturam sua construção poética. Falaremos dos traços mais importantes do poeta francês, para logo após os desenvolvermos e comparamos com as formas utilizadas por João Cabral de Melo Neto para a construção de seus textos.
A primeira característica mencionada no trecho inicial deste trabalho diz respeito à sintaxe, ou seja, à forma de estruturação do texto poético realizada por Valéry. Vamos procurar visualizá-la através da comparação entre a prosa e a poesia, citada pelo autor durante uma palestra, e publicada no Brasil com o título “Poesia e Pensamento Abstrato”. A prosa, para Valéry, tem somente a preocupação de descrever imagens banais, frívolas, atos práticos. Nela não acontece o trabalho de elaboração do texto, de seus termos e da “sintaxe”, servindo como um meio de comunicação utilitário. Por sua vez, no texto poético, as imagens são sugestionadas, preocupando-se não como mero meio de comunicação, mas de reflexão sobre sua construção, sua estrutura: “A poesia pura só chega à denotação depois de mil meandros conotativos, de mil associações de imagem e de som. Seu grande objetivo não é dizer, é dificultar o dizer”. Na palestra citada acima, Valéry compara a poesia e a prosa através do andar e da dança, demonstrando que o primeiro visa a um objeto preciso, pontual. Irá trabalhar para alcançá-lo, calcular o espaço entre seu corpo e o objeto, a velocidade e os meios do andar pensando apenas na finalidade prática de chegar até ele e alcançar o seu fim. Enquanto que a dança é, por si só, sua finalidade. Ou seja, o meio de executá-la, a “infinidade de criações e de variações ou configurações”, constitui o objeto a ser alcançado. Para Valéry, é da mesma maneira que se constrói o texto poético, onde não há finalidade prática, como na prosa, mas sim a preocupação com o desenvolvimento da estrutura do texto.


Dentro desta mesma palestra, o autor trata do “universo poético”, e o “universo musical”. Comentaremos este tema, e iniciaremos a análise da segunda característica mencionada na citação que abre nosso trabalho: a música.
Para o poeta francês, muitas vezes visto como pensador, a música é uma arte relacionada intensamente com a estrutura do texto poético, pois, em ambos os casos, utilizamos da sonoridade, do ritmo, da harmonia. Porém, não o conseguimos com tanto sucesso no poema, pois, como diz Valéry, “o universo poético não é tão forte e facilmente criado. Afinal, seus instrumentos são diferentes. Cabe à linguagem, nossos termos, seus sons e significado, e neste caso, nenhum físico determinou as relações entre esses elementos; nenhum diapasão, nenhum metrônomo, nenhum construtor de escala e teóricos da harmonia. Mas, ao contrário, as flutuações fonéticas e semânticas do vocabulário. Nada puro; mas sim uma mistura de excitações auditivas e psíquicas perfeitamente incoerentes. Cada palavra é uma montagem instantânea de um som e de um sentido, sem qualquer relação entre eles. Cada frase é um ato tão complexo que ninguém, creio eu, pôde até agora dar um definição sustentável”. Contudo, para ele o trabalho do poeta é ainda mais intenso, pois, além de se preocupar com a harmonia, o período musical, a sonoridade, também há o significado que o leitor irá tomar para si do texto, de suas imagens e termos utilizados, além da preocupação com as “regras convencionais” que aos leitores implicam. Desta forma, iniciamos a análise da terceira característica inserida na citação inicial: as convenções.


Quando foi publicado “Le Cimetiére Marin”, sabemos que havia três versões do mesmo poema já escritas. Do texto “Ébauche d’un Serpent” foram publicadas, pelo menos, duas versões. Mas por que o trabalho de se construir e reconstruir seus textos? Além da métrica e sonoridade, há a preocupação com a elaboração de imagens e associações de termos e os diversos significados que os leitores podem atribuir a eles, por conta de convenções já estabelecidas entre tais imagens e termos e seus significados. Ou seja, as convenções partem de experiências e memórias do leitor, e de tudo o que pode influenciar nas definições de significados que este pode atribuir ao texto.
Valéry também cita a Física e a Matemática como sendo mais estimulantes e ricas do que nossa imaginação. Podemos relembrar a afirmação de seu “mestre”, Stéphane Mallarmé, de que a poesia não é feita de ideias, mas de palavras, e analisar esta afirmativa tendo em mente a busca de seu discípulo pela “poesia pura”, liberta de emoções e construída não com a chamada “inspiração”, mas sim com o rigor das duas ciências exatas mencionadas. O autor deve se deter na estrutura do texto poético, elaborando desde sua métrica e rima (segundo Augusto de Campos: “Pierre Guiraud, comparando o uso da rima entre os poetas Du Bellay, Ronsard, Racine, Lamartine, Musset, Vigny, Hugo, Verlaine e Valéry, demonstrou que, de todos, é Valéry o que apresenta o maior índice de rimas ricas, sobressaindo 'Le Cimetière Marin' e 'Ébauche d’un Serpent' como os poemas mais típicos dessa prática”), até termos e imagens criadas, e os sentidos que a elas poderiam ser atribuídos. Valéry trabalha com a amplitude de significado dentro de cada termo cuidadosamente empregado nos seus textos, multiplicando-se as possibilidades de interpretação. Tal característica do poeta corresponde, em grande parte, à influência da escola simbolista francesa, pois ambos buscam por imagens onde o objeto referido não é simplesmente descrito, mas apontado através de sugestões vagas, aparentemente indefinidas.


En cuanto al sentimiento puro y simples, cada uno tiene el suyo.

A última característica mencionada na afirmação de Valéry é o sentimento como instrumento de criação poética. Um texto não se constrói a partir de emoções, de sentimentos particulares ou, como o autor afirma, “Não se faz bons versos com bons sentimentos”. Durante o processo da escrita o instrumento utilizado deve ser o intelecto, a razão atribuída às ciências exatas, o distanciamento. Mas não apenas isto. Valéry busca não construir um texto com impressões subjetivas em relação a uma imagem por estar imersa em sentimento. Elas, muitas vezes, compõem os textos poéticos, atitude criticada em diversos ensaios do poeta francês. Deve-se, sim, subordinar suas impressões particulares à estrutura racional do texto poético. Lembremos que “Le Cimetière Marin” é construído através de sugestões imagéticas que o poeta passa ao leitor muitas vezes construídas a partir de sua reflexão íntima. Porém, trabalhadas pelo poeta para que seu resultado esteja além de uma mera confissão.

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