A ruptura consciente de Kilkerry (I)
Por André Dick
Alguns poetas são, por motivos muitas vezes inexplicáveis, relegados a um segundo plano, quando não totalmente esquecidos. Torna-se mais sério seu esquecimento quando este atravessa décadas, até séculos.
É o caso do poeta baiano Pedro Kilkerry, nascido em 1885, em São Salvador na Bahia, numa família em que pai era de origem irlandesa e a mãe era de origem baiana, vindo a morrer em 1917. Recuperado de forma mais aprofundada por Augusto de Campos a partir de uma avaliação sincrônica da poesia brasileira – não diacrônica (nesse ponto, entenda-se a linear, a que não calcula rupturas dentro de sua linhagem), da mesma maneira que Gregório de Matos havia sido excluído do programa da poesia moderna – e Haroldo o recuperou, no ensaio “O sequestro do barroco na Formação da Literatura Brasileira” –, Kilkerry quase ficou no limbo dos esquecidos. Vejamos que o caso de Kilkerry é diferente: a “violência da letra” impressa, à qual não se submeteu, não preexistiu ao seu descobrimento. Sousândrade, antes dele, sim, foi esquecido porque simplesmente publicou durante a época do Romantismo, período que o abrigou, e não comportava um poeta como ele, transgressivo e extremamente consciente de sua prática. Esta característica Kilkerry também possuía, mas com uma leitura bem mais avançada, dos simbolistas, de Baudelaire a Mallarmé, ou seja, envolvido por uma tradição de ruptura, de consciência dos limiares que a escrita projetava no horizonte estético da produção, ambiente oposto àquele no qual Sousândrade produziu a sua ruptura.
Em A operação do texto, Haroldo, pensando na figura do historiador que cria, dá espaço à recepção da obra, ou está insatisfeito com seu métier ou quer estabelecer a história como uma seleção de seus bens. Ou seja, ele prevê que a historiografia se ressente de pessoas que simplesmente, ao contrário do que se espera, pararam no tempo, depositando suas esperanças em autores que necessariamente não possuem relevância num percurso antilinear.
O que revaloriza o programa poético de Kilkerry passa por nossas categorias de contemporâneo. Conseguimos apenas reavaliar a obra de um autor como Kilkerry porque temos consciência das etapas pelas quais a poesia passou desde os salões da modernidade de Baudelaire. Temos consciência da qualidade de sua obra porque elas se enfrentam, confrontam qualquer obra que se pretende contemporânea. A contemporaneidade se concentra na multiplicidade de tempos (no qual passado, presente e futuro dialogam entre si).
A obra de Kilkerry diz tanto aos dias de hoje (de ontem, de amanhã) quanto diziam na época em que foi realizada. Qual é o ambiente em que uma obra interessante se produz? Que elementos levam um poeta por optar em seguir esse ou aquele caminho? Kilkerry deixou pouquíssimos, raros poemas, feitos a partir de uma visão simbolista, ou seja, ele não faz apenas poesia, mas também música, por meio de seus versos.
Como o dos simbolistas, o trabalho de Kilkerry não deve ser visto pela quantidade, ou seja, pelo que excede. Segundo Augusto de Campos, com o intuito de analisar o “corpus” considerado pequeno de poemas concretos, como o de Kilkerry, avalia: “Em toda as épocas e latitudes literárias há exemplos dessa espécie. Uns poucos sonetos das Chimères de Gérard de Nerval devoram, aos olhos modernos, toda a obra poética de Victor Hugo. Donne e os ‘poetas menores’ da ‘poesia metafísica’ inglesa chegam a interessar-nos mais, sob muitos aspectos, que a própria obra admirável de Shakespeare. Hoelderlin, antes que Goethe, se nos afigura, hoje, um poeta essencial, ‘o poeta do poeta’ na expressão de Heidegger. A pequena obra de Gerard Manley Hopkins, editada postumamente, esmaga a Victorian Age. O Livro, também póstumo, de Cesário Verde, tem um destino semelhante em relação à poesia portuguesa do seu tempo. Arnaut Daniel, o miglior fabbro da poesia provençal, não deixou mais que 18 poemas. A grande obra poética de Mallarmé cabe num pequeno volume”. Em seguida, Augusto cita alguns músicos que perfazem esse trabalho do “menos é mais”, antes de adentrar no simbolista baiano Pedro Kilkerry, leitor dos simbolistas e o principal simbolista brasileiro. Não se tinha obra editada de Kilkerry antes da Revisão feita por Augusto, uma vez que, como conta Jackson Figueiredo, “Kilkerry tinha seus poemas de memória” e quando os escrevia o fazia em pedaços de papel e páginas de livros, nas paredes, sem a intenção de publicá-los.
Para uma introdução rápida ao universo da música, no qual diversos poetas, principalmente os provençais e os da modernidade, como Arnaut Daniel e Mallarmé – este uma influência direta em Kilkerry – foram buscar alimento para sua obra, é interessante se valer do ensaio “Música, filosofia e literatura”, de Benedito Nunes. Muitos outros escritores, entre músicos, filósofos, poetas e críticos, já versaram sobre a relação entre música e poesia, mas cabe aqui ser objetivo e procurar, de forma sucinta, estabelecer um diálogo entre a literatura e a música, projeto intertextual característico da modernidade tanto de Baudelaire quanto de Mallarmé.
Benedito, em seu artigo, afirma que, se no século XVIII a arte musical do Ocidente parecia ter sido banida do âmbito do pensamento literário ou filosófico, no século XIX, ela passou a constituir o polo valorativo da poesia e “mesmo a experiência privilegiada, ora latente, ora manifesta, que a filosofia e a psicologia absorveram”. Naturalmente, a visão de Benedito Nunes ultrapassa o meramente literário, para mergulhar na projeção que teve a música sobre muitos filósofos, entre os quais Rousseau e Kant. O que importa aqui, porém, é sabermos que no século XVIII a literatura era considerada superior, com a justificativa de oferecer um “processo gradual de descoberta, de aprofundamento, como penetração intelectual do texto”, enquanto a música não trabalhava com o entendimento. Assim, o texto, na filosofia de então, proporcionaria conhecimento, enquanto a música despertaria mais emoções, “estados da sensibilidade e da afetividade; entre a comoção visceral e o deleite evocativo, entre o prazer sensível, até sensual, quase físico e o sentimento estático”. O julgamento de Kant, para Benedito, seria exemplar: a música é “mais gozo que cultura”. A música passaria também pelo aprofundamento de Hegel e Schopenhauer.
A partir do final do século XIX, a música já apresenta nomes como Richard Wagner, e a linguagem verbal começa a perder sua “ascendência intelectual”. Na segunda metade do século XIX, esse músico lançar-se-ia quase ao mesmo tempo da publicação de Les fleurs du mal, de Baudelaire. Não por acaso Baudelaire escreveria um artigo sobre Wagner, intitulado “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”. Para ele, Wagner representava a união entre poeta e músico, o “artista completo que em sua combinação de drama, poesia, música e cenário exemplificou a realização da perfeita inter-relação das percepções sensoriais que deviam ser o ideal do poeta”. Como Baudelaire, lembra Anna Balakian, Mallarmé “sugeriu que a música era algo mais do que o prazer que se harmonizava no ouvido. Música não por amor ao prazer ou à emoção, mas para movimentar e provocar a imaginação” – o que Baudelaire chamou “um êxtase feito de enlevo e conhecimento”. Por sua vez, Mallarmé identificou essa provocação como “a junção da visão e da audição que se torna uma compreensão abstrata”. O problema de toda sua vida, chama a atenção Valéry, era “devolver à Poesia o mesmo império que a grande música moderna lhe havia roubado”.
Cada vez mais, os poetas da modernidade se aproximaram do silêncio para chegar à música. Assim aparece em Kilkerry que pensa “um presente, num passado” no poema “É o silêncio”:
É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas...Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma que ao som que se aproxima
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
E abro a janela. Ainda a janela esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.
Se a estrofe final lembra mais um simbolismo baudelairiano, sob a influência de Poe, no restante do poema as imagens são mallarmeanas (silêncio, cigarro, vela acesa no primeiro verso; o livro que olha da estante no segundo), outras imagens adentram esse silenciamento verbal: “sangue da luz em cada folha”, “mão que molha a pena”, o “bulir das coisas”, o passo que “se aveluda”, “asa que o ouvido anima”, “câmara muda”, “asa da rima”, “sala muda que afonamente rufa”, além do orientalismo já evidente em Mallarmé (quando o poeta se imagina um Buda). São signos que denotam uma leveza. Eis que a música rompe o espaço: “Últimas notas trêmulas” – destacando-se o vocábulo “trêmulas”, o que indica a oscilação tanto de imagens quanto de métrica, apesar das rimas. Impressiona a musicalidade desse poema, a condução dos versos, entre aliterações e assonâncias, descrevendo uma imagem sobre a qual paira o silêncio – mas é um silêncio verbal, simbolista, exposto em palavras.
domingo, 27 de junho de 2010
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