A ruptura consciente de Kilkerry (II)
Por André Dick
Segundo Benedito Nunes, “próprio da poesia é servir-se da expressão verbal para resgatá-la”, uma vez que a poeticidade aprofunda tal desgaste “até romper com as lindes da expressão verbal que o silêncio já circunda; ultrapassando esses limites, só a música, quebrando o silêncio que o verbo não preenche, é capaz de se fazer ouvir”. Desse modo, Mallarmé e Verlaine, que procederam Baudelaire, quiseram “estabelecer não só a convergência, mas a coincidência entre música e poesia”, com o objetivo de “situar uma e outra aquém e além da linguagem verbal, como se a poesia pudesse romper com o circuito do significante e do significado ao qual se acha encadeada”.
Em seu artigo “La musique et les lettres” (1894), Mallarmé escreve que “a Música se une ao Verso, a partir de Wagner, para formar Poesia”. Em “Crise de vers”, diz: “Toda alma é uma melodia, que se busca reatar; e por isso existem a flauta e a viola”. E ainda: “Que uma extensão medida de palavras, abarcadas para a compreensão [...] se ordene em traços definitivos e com ele o silêncio”.
Pierre Boulez avalia que desde o final do século XIX as correntes poéticas têm uma “forte ressonância no desenvolvimento estético da música”. Isso se deve, sobretudo, segundo o músico francês – aliando esta análise à da crítica estruturalista – ao fato de que a palavra da sua época é estrutura:
Se escolho um poema para fazer dele algo mais que o ponto de partida uma ornamentação que irá tecer arabescos à sua volta, se escolho o poema para instaurá-lo como fonte de irrigação de minha música e criar assim um amálgama de tal natureza que o poema se torne “centro e ausência” do corpo sonoro, então não posso me limitar apenas às relações afetivas que as duas unidades mantêm entre si; impõe-se uma trama de conjunções que comporta, entre outras, as relações afetivas, mas que engloba, por outro lado, todos os mecanismos do poema, desde a sonoridade pura até sua ordenação inteligente.
Para Octavio Paz, embora o horizonte de Un coup de dés não seja o da técnica, na medida em que seu vocabulário é ainda o do simbolismo, o que Mallarmé deseja em seu poema, e esclarece no prefácio, é um “espaçamento da leitura”, aliado a um aspecto antidiscursivo, em que a Ideia absoluta se fragmenta e o poema só pode ser entendido na soma de suas partes, utilizando o branco como espaços musicais e tentando atingir uma visão suprema da página, que se abre para a poesia ocidental a partir das palavras que a preenchem. Buscando a entonação da música, da sinfonia, o poema de Mallarmé, porém, para ele mesmo, é um “esboço”, que não rompe com “todos os pontos da tradição”, mas “o suficiente para abrir os olhos”. Além de considerar a obra de Mallarmé tão importante para a civilização industrial como a Divina comédia de Dante para o Medievo, mesmo com suas apenas onze páginas duplas, “nas quais o poeta medita, em linguagem extremamente rarefeita”, para Haroldo de Campos, a revolução de Un coup de dés
não é apenas lexical e semântica, mas, além disto, sintática e epistemológica. Mallarmé é um syntaxier, um arrojado subversor da sintaxe. O poema constelar, na disseminação da forma, rompe a clausura da estrutura fixa e estrófica, dispersa a medida tradicional do verso.
Composto de “verdadeiros ideogramas verbivocovisuais, segundo Faustino, o poema apresenta uma “sintaxe dentro de cada palavra, uma sintaxe entre as palavras, uma sintaxe na soma das palavras e em qualquer coisa para além dessa soma”.
De qualquer modo, é a musicalidade ainda registrada pelo simbolismo, caracterizada, antes de Mallarmé, pelo poeta Charles Baudelaire, por Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, incorporada à busca pela forma da palavra, em seu tamanho e sua importância na disposição da página, que se destaca nos versos de Un coup de dés. Se Rimbaud pretendia, como observa Paz, fundar a palavra na história, Mallarmé proclamaria absurda e nula a intenção de fazer do poema o duplo ideal do universo. Essa ligação de Mallarmé com a música transparece em muitos poemas de Pedro Kilkerry, como em “O verme e a estrela”, musicado por Augusto e Cid Campos em Poesia é risco e por Adriana Calcanhotto em “A fábrica do poema”:
Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! Enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?
Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?
Vejamos a sonoridade que se distribui ao longo do poema por meio de epiderme/verme, compondo uma imagem ao mesmo tempo bela e negativa, encaixando a “luz” da estrela com o “azul” celeste. Uma imagem magnífica: “um raio ao teu viver”, e a melancolia do sujeito: “Eu cantaria a tua luz!”; “Ceguei! ceguei da tua luz?” – sentindo-se um verme extinto pela luz da estrela na epiderme.
Para Augusto, “Kilkerry não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel desempenhado na criação pelo subconsciente – mais tarde supervalorizado pelo Surrealismo – como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética. Por outro lado, a capacidade de síntese, assim como as limitações da sintaxe ordinária, são mais aguçadas em Kilkerry do que em qualquer outro poeta do nosso Simbolismo”. No poema abaixo, “Harpa esquisita”, por exemplo, surge a versão kilkerryana de “Le bateau ivre”, de Rimbaud, numa sucessão de imagens marítimas, mas nada óbvias, em que o eu se encontra descentralizado, personificado por meio de signos característicos do simbolismo (“manto azul”, “asa no azul diluída”, “mar”, “pedras”, “almas”, “notas no ar”, “lírios de ouro”, “céu”, “hastes de prata”, “espuma”, “flor”, “estrelas”, “naufrágio” etc.):
Dói-te a festa feliz da verdade da vida...
Tanges da harpa, em teu sonho, almas e cordas, cantas,
Bóiam-te as notas no ar, a asa no azul diluída
E, assombrados, reptis – homens, não! tu levantas!
E apupilam-te a frente as mil pedras agudas
De ódios e ódios a olhar-te... E és um rei que as avista,
No halo, do Amor, que tens! se em colar as transmudas
Vais – um dervixe persa, o manto azul – Artista!
Inda olhar adormido abre, e é de ocre, e avermelha!...
Vem colar-te ao colar...e, oh! tua harpa esquisita
Plange... flora a zumbir, minúscula, que imita
A abelheira da Dor, em centelha e centelha.
E é a sombra... E o instrumento, a gemer, iluminado,
Como que à noite estrela um núbio corvo... E lindo
(Inda que as asas não no terás ao lado)
Por que os pétalos d’ouro, a haste de prata, abrindo,
Um lírio de ouro se alça?...Os passos voam-te, pelas
Ribas...Oh! que ilusões da flor, que tantaliza!
Sobe a flor? Sobes tu e a alma nas pedras pisa?....
Pairas... Em frente, o mar, polvos de luz – estrelas...
Pairas... e o busto a arfar – longe, vela sem norte.
Negro o céu desestrela, o seio arqueado: escuta.
No amoroso oboé solveja um vento forte
E, alta, em surdo ressoo, a onda betúmea e bruta.
A ânsia do mar, lá vem, esfrola-se na areia...
Seu líquido cachimbo é mágoa acesa, e fuma!
E chamas a onda: “irmã!”. E em fósforo incendeia
Na praia a onda do mar, ri com dentes de espuma.
De ametista, em teu sonho, uma antiga cratera
Mal te embebe – alegria! – alvos dedos de frio,
Eis se emperla o rosto e a prantear vês, sombrio
A onda crescer, rajar-se em brutal besta-fera!
Olhas... E, soluçoso, à música das mágoas
Amedulas o Mar e amedulas a Terra!
A sombra aclara... E é ver a dança verde de águas
E arvoredos dançando ao coruto da serra!
Gemes... Dedando o Azul as magras mãos dos astros
Somem, luzindo... Ao longe, esqueleta uma ruína
Em teu sonho a anervar argentina, argentina...
De ilusões, no horizonte, ossos brancos... são mastros!
Quente estrias a alma, à frialgem, nas cousas...
Que bom morrer! manhã, luz, remada sonora....
Pousas um dedo níveo às níveas cordas, pousas
E és náufrago de ti, a harpa caída, agora.
Ah! os homens percorre um frêmito. Num choro...
Move oceânica a espécie, amorosa, amorosa!
Mais que um dervixe, és deus, que morre, a irradiosa
Glorificação de ouro e o sol de ouro... à paz de ouro.
De todo este poema, parece-me que o fragmento que melhor caracteriza a modernidade de Kilkerry seja “Como que à noite estrela um núbio corvo”: através das palavras noite, estrela e corvo ele apresenta uma síntese não só do simbolismo, mas da modernidade, de forma absolutamente clara. Não podemos deixar de atentar, também, das imagens negativas: “Negro o céu desestrela” e “em surdo ressoo” – como se o poeta soasse para dentro, o que leva ao diálogo com “Oco”, de Augusto de Campos.
Segundo Augusto, foi apenas na segunda fase do simbolismo brasileiro, com Ernani Rosas e Kilkerry, que encontraremos algo parecido com “sínteses metafóricas” e “perturbações sintáticas” de um Mallarmé ou Rimbaud, dando o “salto para a modernidade” – lembrando-se que Kilkerry traduziu o poema “O sapo”, de Corbière, numa “recriação envolvente, sem nenhum desperdício semântico”. Desse modo, “Kilkerry traz para o Simbolismo brasileiro um sentido de pesquisa que lhe era, até então, estranho, e uma concepção nova, moderníssima, da poesia como síntese, como condensação: poesia sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas”. Desse modo, para Augusto, “em Kilkerry a dicção poética atinge uma contenção – que, diga-se de passagem, nada tem a ver com a imperturbabilidade olímpica e satisfeita dos parnasianos –, um despojamento, uma consciência artística e artesanal raramente logrados na poesia brasileira”. Na introdução a seu livro de traduções de Rimbaud, Augusto lembra do questionamento de Kilkerry – “O Inconsciente será um poeta simbolista?” –, ao qual ele mesmo responde: “o Inconsciente é um Rimbaud admirável, trabalha todo esse inanimado universal”. Segundo Augusto, junto com Cesário Verde e Pessoa, Kilkerry o inspirou para transpor “Le bateau ivre” para o português. Isso fica ainda mais claro quando vemos um poema como “Cetáceo” que, com o “azul num largo voo branco”, dialoga diretamente com Mallarmé e seus poemas que tentam alcançar cada objeto em sua unidade. No entanto, Kilkerry, como Rimbaud e Mallarmé, visualiza, através de todos, o “cetáceo” do título, como se cada verso se aproximasse como um zoom da cena imaginada:
Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo voo branco.
Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.
Tine em cobre o zenite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.
E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d’água ou do sol vermelho.
Como postula Ezra Pound, “a poesia se atrofia quando se afasta muito da música” e “o meio de aprender a música do verso é escutá-la”. Assim, segundo Pound, “toda canção popular tem pelo menos um verso ou sentença perfeitamente claro. Esse verso SE AJUSTA À MÚSICA”. Não por acaso, Augusto vai fazer uma ligação da Tropicália, de Caetano e Gregório de Mattos com os trovadores provençais – e insere o simbolista Pedro Kilkerry como o diálogo direto. Ele, com sua carga simbolista, é um trovador que se alinha com Mallarmé na ruptura consciente da tradição – o que o torna ainda mais vital para o estudo da poesia brasileira.
domingo, 27 de junho de 2010
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