Apollinaire: poeta do amor e dos caligramas (I)
Por André Dick
O poeta Guillaume Apollinaire nasceu em Roma, Itália, numa família de polacos, em l880, quinze anos antes de os irmãos Lumière trazerem a público a arte cinematográfica. Seu nome completo: Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire Kostrowitzsky. Seus pais: um oficial italiano, Francesco Flugi d’Aspermont, e uma aventureira polonesa, Angélica de Kostrowitzksy.
Após diversas jornadas, por cidades como as de Mônaco, Nice e Cannes, o destino de Apollinaire, no início do século XX, seria Paris, centro de toda a vanguarda europeia e influência direta na vida de muitos artistas.
Deixando de lado sua vida extraliterária agitada - seu amor por várias mulheres, além da suspeita de ter roubado estatuetas do Louvre e da sua participação no exército francês -, foi Apollinaire quem lançou um dos primeiros discursos de vanguarda em terras francesas, apostando todas suas fichas no cubismo de Picasso, cuja filosofia acabou levando para a literatura, influenciado pelos movimentos de vanguarda - entre os quais o dadaísmo e o futurismo.
Para Décio Pignatari, Apollinaire é um “poeta confluente e defluente”:
Confluem Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de Dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como Mário de Andrade (Celso nihil estate varíola Gide memoriam), Vinícius de Moraes (Munevada glimou vestasudente), Oswald de Andrade (vários aspectos da personalidade e da obra, a mescla de realismo e lirismo elementarista), os concretos e neoconcretos [...].
Sintonizado no que acontecia e mudava ao seu redor (as invenções trazidas pelo cinema, as máquinas da Revolução Industrial invadindo as fábricas), ele começou a compor poemas bastante originais, na obra Alcoóis, preenchendo, relativamente, a lacuna deixada por Mallarmé e Arthur Rimbaud.
Esta obra trazia o poema “Zona”, talvez o exemplo máximo do poeta, marcado pela absoluta contemporaneidade. Trata-se de um poema revolucionário, “o barco ébrio” de Apollinaire, no qual o surreal e o concreto se misturam, com referências a amigos, a passagens, a situações cotidianas, mesclando lirismo e agressividade, esta típica do futurismo. Segundo Giménez Frontín, como um bom poema cubista, “oscila entre a simultaneidade de ideias, percepções e sensações e a disposição gráfica das palavras”, assimilando “a nascente linguagem cinematográfica”. Seus primeiros versos merecem uma atenção especial, pois indicam uma mudança de rumo, causada tanto pelos movimentos literários do início do século XX quanto pela transformação de mundo, vista na sociedade, por meio, sobretudo, da Revolução Industrial, na qual os automóveis e os aviões têm papéis indispensáveis:
Enfim você se cansou desse mundo antigo
Pastora ó Torre Eiffel o rebanho das pontes parte esta manhã
Chega de viver na antiguidade greco-latina
Aqui os automóveis tem aparência velha
Só a religião fica nova a religião
Simples como os hangares da aviação
Para Alfonso Berardinelli, em Da poesia à prosa, o poema é uma “hemorragia emotiva e moral, um poema de adeus a Paris: o primeiro verso, as primeiras palavras já traziam o tom de conclusão. O poemeto nasce quando algo terminou, nasce da náusea e do cansaço. A cidade moderna é também a encarnação final de um velho mundo a ser abandonado em nome de um retorno a casa: volta à sempre-viva religião da infância, e a uma infância da religião, aos ídolos da Oceania e da Guiné”. Além disso, para Berardinelli, Paris, nesse poema, é “o centro ao redor do qual muitas outras cidades orbitam, algumas só nomeadas ou pouco mais que isso, e toda uma variada e vasta geografia sentimental do autor: postais ilustrados da interioridade e da memória”, e Apollinaire “se diverte com um romantismo de literatura popular ou cartaz publicitário”.
Alcoóis, como uma das primeiras grandes obras da poesia moderna, mostra um Guillaume extremamente eclético. Embora grande parte dos poemas, como “A canção do mal-amado”, entre outros menos conhecidos, sigam a linha de “Zona”, revelando a inserção do poeta num mundo caótico, onde a poesia é captada em cápsulas, outros textos poéticos dessa obra, como “A ponte Mirabeau”, revelam um poeta dominado por um lirismo catuliano, percebido, por exemplo, no seguinte fragmento:
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena
E nossos amores
É preciso recolocar as dores em cena
A alegria sempre atrás da pena
Chegada a noite a hora comemora
Os dias se vão não vou embora
Lirismo que também pode ser encontrado em “Annie”, nome de uma das maiores paixões existenciais de Apollinaire, sobrepujada apenas por Madeleine, outra inspiração feminina em sua obra. Nesse poema, o poeta imagina um encontro com ela, numa América vista com olhos entusiasmados:
Sobre a costa do Texas
Entre Mobile e Galveston
Há um grande jardim de rosas
Numa casa de campo
Que é uma grande rosa
Uma mulher sempre passeia só
Dentro do jardim
Quando ela passa na estrada
Bordada de tílias
Nós nos olhamos
O amor é visto por Apollinaire de modo apaixonado e lírico. No poema “Trombetas de caça”, por exemplo, temos os seguintes versos sobre uma relação amorosa:
nossa história é nobre e trágica
como a máscara de um tirano
drama nulo arriscado ou mágico
Outro poema de Alcoóis, bastante traduzido e analisado, é “O signo”, um dos melhores de Apollinaire, sobre a influência da mudança de estação no amor dos “amantes”. Seus versos abaixo revelam, sobretudo, um trabalho elaborado de linguagem:
Fui submetido à Regência do Signo de Outono
Portanto amo as frutas e detesto as flores
Lamento todos os beijos de que fui dono
Igual à nogueira colhida diz ao vento suas dores
A influência da estação no amor também é tema do poema “Adeus”:
Colhi este pedaço de esteva
O outono está morto e lembra
Não nos veremos mais sobre a terra
Odor do tempo pedaço de esteva
Lembra que te espera
Esses poemas que têm como referência o tema do amor, a figura da amada, trazem algumas das melhores soluções de imagens e ritmos poéticos. Por isso, como também assinala Berardinelli, tratando do poema “Zona”, mas que poderia representar para toda a obra, “a miscelânea de imagens [em Apollinaire] é jocosamente sentimental e naïve”. Apollinaire equilibra esse sentimentalismo com a linguagem exata e os cortes para cada verso, que acentuam uma modernidade, em que tudo parece claro e, ao mesmo tempo, encoberto. Ou seja, a natureza romântica de Apollinaire é evidente - mas algo de sentido se perde depois que lemos os poemas, o que representa a própria poesia configurada.
sexta-feira, 29 de abril de 2011
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