terça-feira, 13 de setembro de 2011

A floresta íngreme de Georg Trakl (I)

Por Nicole Cristofalo e André Dick

Nascido em 1887, em Salzburgo, e desaparecido em 1914, na Cracóvia, Georg Trakl é considerado um dos mais importantes poetas expressionistas – figura certamente ao lado de August Stramm. Em A verdade da poesia, Michael Hamburger afirma que Trakl não “foi deliberadamente um poeta modernista nem experimental como seu contemporâneo mais velho, August Stramm”. Em Poesia expressionista alemã, Cláudia Cavalcanti considera que a poesia dele “não é programática, revolucionária ou engajada; é antes uma poesia de lamento, elegíaca”. No entanto, é ainda, da floresta íngreme alemã, o poeta mais representativo.


Na sua coletânea publicada no Brasil pela editora Iluminuras, De profundis, a tradutora Cláudia Cavalcanti comenta, no posfácio (“Emergir das profundezas de G.T.: uma tentativa”), que ele “nascera no seio de uma família abastada e protestante, na provinciana e católica Salzburgo”, sendo “o quarto de seis irmãos”. A morte de seu pai, um mês antes de se formar como farmacêutico, em Viena, 1910, “foi um grande choque para aquele cuja mãe sempre fizera questão de se manter afastada dos filhos [...], além de ter significado um abalo na estrutura financeira da família”. Mesmo antes, salienta Cavalcanti, Trakl já “enveredara por uma vida boêmia, voltada para o álcool e as prostitutas, mas sobretudo para as drogas, que conseguira pela primeira vez através de um amigo, filho de farmacêutico e depois, evidentemente, graças às facilidades que lhe proporcionavam a profissão”. Mas sempre, acima de tudo, manteve uma relação conturbada com a irmã, Grete, a quem dedicou diversos poemas.
O poeta teve grande proximidade de Ludwig Wittgenstein. André Vallias transcreve sete dias consecutivos do Diário Secreto, que Wittgenstein escreveu de 1914 a 1916, no texto “Canto dum melro em cativeiro”, dedicado ao poeta, na revista Cacto (nº 4), assim como poemas e cartas de Trakl(citados ao longo desse texto). Essas anotações, conforme Vallias, “dão conta da intensa e torturada reflexão existencial que acompanha a gestação do Tractatus Logico-Philosophicus”.


Como conta Vallias, Wittgenstein, que herdara uma fortuna, escreveu ao editor da revista Der Brenner, Ludwig von Ficker, afirmando que gostaria de depositar em sua conta 100.000 coroas e pedindo que as distribuísse entre “artistas austríacos necessitados”. Um dos agraciados foi justamente Trakl. No entanto, prossegue Vallias, a quantidade depositada em sua conta não alterou o curso de sua história: “Quando a guerra finalmente eclode, em agosto de 1914, Trakl se alista como voluntário. Wittgstein fará o mesmo”.
Para Vallias, ambos estavam mais próximos do que se imaginava: compartilhavam admiração por autores como Dostoiévski e Tolstói, além da “mesma exasperação pela pureza da linguagem e do caráter; a dificuldade de comunicação com seus iguais; o desprezo pelas convenções sociais; e o tormento dos escrúpulos morais”.
Prossegue Vallias:

No início de outubro, Georg Trakl será encaminhado ao Hospital de Guarnição, em Cracóvia. Extremamente deprimido, tentara se matar no front, após vivenciar, mais próximo do que podia suportar, os horrores da guerra. Como farmacêutico, fora destacado para cuidar sozinho de um grupo de 90 soldados gravemente feridos, largados num paiol. Do lado de fora, pendiam dezenas de camponeses rutenos, enforcados pelo exército austríaco, acusados de colaboração com os russos.
Em 25 de outubro, Ludwig von Ficker visita o poeta no hospital e informa-lhe que Wittgenstein encontrava-se não muito distante. O filósofo servia num navio de guerra que subia o rio Danúbio, em direção a Cracóvia.

Esses 90 feridos eram da batalha de Grodek, na Galícia. Trakl fez um poema, aliás, intitulado “Grodek” (vejamos na tradução de André Vallias), no qual vislumbra a irmã, Grete, em determinado verso, mas sobretudo o horror da guerra:

À tarde soam as matas de outono
De armas mortais, as planícies douradas
E lagos azuis, por onde o sol
Rola sombrio; a noite ronda guerreiros
Em agonia, o clamor feroz
De suas bocas destroçadas.
Porém mudas, no chão do pasto, juntam
As nuvens vermelhas, onde um deus em fúria
Mora no sangue vertido, o frio lunar;
Todas as estradas desembocam em negra podridão.
Sob os ramos dourados da noite e sob estrelas
Oscila a sombra da irmã por entre o silente arvoredo,
A saudar o espírito dos heróis, as frontes sangrando;
E suave soam no junco as flautas escuras do outono.
Ó tão altivo luto! altares brônzeos,
À ardente chama do espírito hoje alimenta uma dor atroz:
Os netos não nascidos.


Trakl escreveria a Wittgenstein, de Cracóvia, em 26 ou 27 de outubro de 1914:

Prezado Senhor!
Ser-lhe-ia imensamente grato se me concedesse a honra de uma visita. Estou temporariamente, há 14 dias, no enorme Hospital de Guarnição, no quinto setor de doentes psíquicos e nervosos. É provável que receba alta nos próximos dias, par retornar ao campo de batalha. Enquanto não se decide a respeito, gostaria muito de lhe falar.
Com as melhores saudações, seu devotado Georg Trakl.

É por meio do Diário Secreto de Wittgenstein que percebemos sua admiração por Trakl. No dia 5 de novembro de 1914, ele escreve:

Seguindo cedo para Cracóvia, aonde deveremos chegar no meio da noite. Estou muito ansioso para saber se irei encontrar-me com Trakl. Espero muito. Sinto muito a falta de alguém com quem possa conversar um pouco.

Já no dia seguinte, escreve:

Cedo à cidade, rumo ao Hospital de Guarnição. Lá, fui informado de que Trakl morrera há poucos dias. Fiquei muito abalado. Que tristeza, que tristeza!!!

Trakl havia morrido de overdose de cocaína. Dele, Wittgenstein diria: “Não entendo a poesia de Trakl, mas me deslumbra, e não há nada que me dê melhor a ideia de gênio”.


Em 24 de outubro de 1914, Trakl havia escrito numa carta a Ludwig von Ficker:

Caríssimo e prezado amigo!
Aqui seguem os manuscritos dos dois poemas que lhe havia prometido. Desde sua visita ao hospital, meu estado tornou-se duplamente infeliz. Já me sinto quase fora do mundo.
Por último, gostaria de acrescentar que, em caso de meu falecimento, é meu desejo e vontade que tudo o que tenho de dinheiro e demais pertences sejam destinados à minha querida irmã Grete. Caro amigo, receba o abraço apertado de seu

Georg Trakl

Sebastião Uchoa Leite fez o poema “Ludwig im Traum” (de A espreita), tratando de Trakl e Wittgenstein com um tom de histórias em quadrinhos, como outros textos seus:

Wittgenstein não entendia
Os poemas de Trakl
Provavelmente
Georg entenderia
Ainda menos
Os filosofemas de Ludwig
Ainda assim
Ludwig financiou-o
Não é o amor que move o Sol
Muito menos as estrelas
O filósofo sabia mas
O saber
Preferia calar

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