quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A vanguarda primitiva de Oswald de Andrade (II)

Por André Dick

Esta poesia, baseada numa linguagem primitiva – no sentido de originária, infantil –, busca nos fatos, como afirmava um dos tópicos do manifesto, a razão para a poesia – e os fatos eram, sobretudo, voltados ao passado. Na primeira parte de Pau Brasil, Oswald recorta momentos da história brasileira com uma dose peculiar de sátira. Nos poemas “A descoberta” e “As meninas da Gare”, por exemplo, o poeta brinca com trechos da “Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil”, de Pero Vaz de Caminha. Já em “Riquezas naturais”, Oswald brinca com a própria língua portuguesa arcaica, abolindo a sintaxe clássica e as vírgulas. Seu intuito, claro, é soar um “homem natural tecnizado”, como escreve em “A crise da filosofia messiânica”:

Muitos metaes pepinos romans e figos
De muitas castas
Cidras limões e laranjas
Uma infinidade
Muitas cannas daçucre
Infinito algodam
Também há muito paobrasil
Nestas capitanias


Inserido nesse primitivismo, estão todas as vanguardas e a velocidade do mundo moderno. A velocidade do poema, tão prestigiada pelo Futurismo de Marinetti, encontra respaldo no seguinte fragmento do poema “Versos de Dona Carrie”, cujo encadeamento, além de rápido, indica o crescimento urbano inevitável:

A neblina nos segue como um convidado
Mas há um clarão para as bandas de Loreto
Cafezais
Cidades
Que a Paulista recorta
Coroa colhe e esparrama em safras
A nova poesia anda em Godofredo
Que nos espera em Forde

Em “Poemas da colonização”, o poeta se volta para o interior, para o passado, melancolicamente, identificando a repetição dos ciclos, e recorta, baseado em imagens claras e buscando versos sintéticos, o universo, sobretudo, rural, cafeeiro, como fica claro no poema “A transação”, de “Poemas da colonização”:

O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros das pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café

Os versos finais merecem destaque: “Por terras imaginárias / Onde nasceria a lavoura verde do café” – ou seja, terras que passam a inexistir para o sujeito.


Oswald busca, paralelamente, visando novamente ao “homem natural tecnizado”, a imaginação cinematográfica do início do século XX, quando o cinema ainda era uma indústria em crescimento e, para muitos, uma incógnita. Oswald, em poemas como “O capoeira”, abaixo, utiliza uma colagem de versos quase cinematográfica:

- Qué apanhá, sordado?
- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada

A mesma característica se insere no poema “Walzertraum”, da seção “rp. 1”, cujo fragmento pode ser lido abaixo, onde o poeta busca uma colagem de versos como Tristan Tzara promovia sua técnica de recortar figuras para formar uma obra dadaísta:

Aqui dá arroz
Feijão batata
Leitão e patarata
Passam 18 trens por dia
Fora os extraordinários
E o trem leiteiro
Que leva leite para todos os bebês do Rio de Janeiro
Apitos antigos apitam
Sentimentalmente
Eu gosto dos santuários
Das viagens

Enquanto a parte “Secretário dos Amantes” brinca com a linguagem lírica romântica, a seção “Postes da Light” possui um poema em especial que brinca com a disposição gráfica das palavras e é especialmente radical no contexto da poesia daquela época, intitulado “A Europa curvou-se ante o Brasil”, cujo encadeamento de versos é feito com resultados de partidas de futebol e, ao final, tenta vingar-se de Portugal indiretamente. No entanto, a maneira como Oswald inscreve o poema é infantil, lembrando marcações num diário.

7 a 2
3 a 1
A injustiça de Cette
4 x 0
2 x 1
2 x 0
3 x 1
E meia dúzia na cabeça dos portugueses

Por isso, também, a melancolia oswaldiana está ligada àquela infância de que trata Agamben em Infância e história.


Em seu estudo sobre Oswald, “Marco zero de Andrade” (de Contracomunicação), Décio Pignatari dá pistas para compreender Oswald. Para ele, Oswald não tem, como Mário de Andrade e alguns outros, o objetivo de criar uma “língua brasileira”. Tem, sim, a necessidade de expor o “sentido puro mediante a inocência construtiva”. Seu processo criativo consistiria num “processo de seleção do já existente, no momento ou na memória. Recorte, colagem, montagem. Antiliterariamente. O processo documentário”, que pode ser ligado ao próprio dadaísmo.
Assinala que o selvagem (ou o índio), revelou a “visão de uma nova moral, não cristã, e de uma nova linguagem, direta, ideogrâmica” (Pignatari compara o movimento ao de Pound em relação a Confúcio), o que fez com que nunca quisesse utilizar da língua ou da literatura tupi “para efeitos estilísticos ou formais”. O tupi de Oswald, porém, conforme observa Benedito Nunes, no artigo “Do tabu ao totem”, “não era de nenhuma raça, e, sim, o primitivo irredento, a contraprova de de uma anti-história dentro da história – um membro da horda freudiana, um salto exemplar da ancestral nebulosa do ‘pensamento selvagem’, ser cultural à margem de uma sociedade a que pertencia e olhando-a distanciadamente, com o fulgor da estranheza crítica”.

Segundo Pignatari, Oswald, por se colocar contra a sociedade de uma maneira geral, mesmo sendo de origem burguesa, nunca conseguiu efetivar realmente uma carreira literária, fazendo com que muitos desconfiassem de que sua obra fosse amadora.


Não que Pignatari esteja certo, ao afirmar, por exemplo, que Mário de Andrade descartava o futurismo (do qual bebeu, de um modo ou de outro, em seu Pauliceia desvairada), mas foi Oswald que valorizou as artes visuais, o movimento cubista – seu romance Memórias sentimentais de João Miramar é um exemplo claro de tal influência – e, para salientar novamente, o dadaísmo, que esteve ligado diretamente à pop art norte-americana de Marcel Duchamp e seus ready-mades. Pignatari acerta ao afirmar que a poesia de Oswald é “a poesia da posse contra a propriedade”, com “versos que não eram versos”, pondo em crise o próprio verso, como Mallarmé: “Alguns poemas são simples transcriações de anúncios de época. Destacados do contexto, os textos adquirem novo conteúdo: de lugares-comuns se transformam em lugares incomuns”, captando um dos momentos altos do cenário de São Paulo. Ocorre uma desautomatização da linguagem, incentivada, aliás, pelos formalistas. Pignatari compara Sousândrade com Oswald. Ambos, para Pignatari, não ficaram esperando “pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais, destinadas ao confronto e ao julgamento internacional”. Ou seja, cada um deles, a seu modo, “deglutiu o avião, anticolonialmente, e produziu, de fato, uma poesia de exportação”.
Oswald vislumbrava, como poucos poetas, o outro: “Só me interessa o que não é meu”, provocação a ponto de suscitar o primeiro lance de alteridade assumida de nossa literatura, mas nunca visto pelo ângulo da acusação de que não podemos cultivar nossa literatura a partir de outra em razão de que estaríamos aceitando nossa condição de “subdesenvolvidos”, ignorada por Octavio Paz, mas apoiada por alguns críticos brasileiros.


Oswald já realizava o que Paz afirma no ensaio “Os signos em rotação”: “A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade” (“outridade”, vale assinalar, é um termo que se espalha ao longo de O arco e a lira, sempre sob o mesmo ângulo da alteridade, que é quando o “homem se realiza ou se completa quando se torna outro”, quando “a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser o que somos, e que, sem deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte”, no momento tanto da leitura quanto da escritura, dominado pela sensação de transcendência crítica e pensada). Benedito destaca, no artigo “Do tabu ao totem”, que “Quando nos mírassemos no espelho do estrangeiro, passaríamos a estranhar-nos e a descobrir nossa originalidade nativa”, convertendo-se a assimilação “numa atitude devoradora generalizada”, comeríamos “nossa herança cultural ambígua com suas reservas inconscientes de imaginário, poeticamente transladáveis, e também com seu imenso poder repressor, que aliou a catequese aos Governos Gerais”. Com todos esses exemplos e revisão histórica, nunca é demais lembrar que Oswald de Andrade, antes de ser modernista, é um poeta contemporâneo, sintonizado com o mundo atual no que ele tem de procura por uma ética da linguagem, um dos responsáveis diretos pela existência atual de uma poesia brasileira voltada para um lirismo comedido e calculadamente triste, do qual já tratamos em “A melancolia antropófaga de Oswald”.

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